O Copo de Leite

Era um dia de sol; A luz brilhava ao ponto de impedir uma boa visualização do que havia no céu. As palmeiras no morro íngreme balançavam, seguindo o ritmo impiedoso do vento. Ao longe, bois caminhando no campo alagado. Marrecos gritavam ao longe; motos transitavam pelo ramal, com a pista fofa, de muita areia.
Jorge se balançava; havia tempos, não podia sair, mal conseguia andar. Sua única arma era memória; dos tempos de jovem, da maturidade cansada; da velhice do descanso forçado. Naquele dia, ao certo, lembrara de uma flor.
Transportou-se em quarenta anos. Estava no povoado de Desce e Rola. Era um festejo; o santo não vinha à memória naquele momento. Duas dezenas de homens carregavam o mastro; homens e mulheres cantavam, tocavam e dançavam ao ritmo do Tambor de Crioula; o dia se aproximava do fim, e as velas e lamparinas já iniciavam o seu uso, pois não havia eletricidade num raio de pelo menos, 30 quilômetros.
Foi então que ele viu…
Viu o que, para ele, seria a própria visão do paraíso; tinha em si a concepção mais terrena e materialista possível, apesar de toda a sua simplicidade, em parte pela humildade de condição, e também por princípios reproduzidos e adquiridos, em curvas ali e acolá.
Olhou para uma moça bonita, cabelos lisos, a pele levemente próxima do tom de chocolate; algum leitor pode dizer se tratar da pintura de Iracema. Outros, mais maldosos, dizem ser exagero do narrador ou do personagem. Nenhum dos dois. Diremos que ela era singular em sua beleza.
Seu nome era Júlia. Trazia à cabeça, sobre aquele limpo, longo e brilhante cabelo, um copo de leite realçava o brilho do encanto, inebriando a quem, desatento e de coração aberto, deixasse a porta aberta para um trator de sensações e desejos passar. Jorge era assim; para ele, se por um acaso qualquer, ganhasse uma pétala de tal flor, seria a própria ressurreição em vida (convenhamos que não o era, mas o exagero é próprio de algumas pessoas). O romantismo estava em tal ordem enraizado nele, que seria incapaz de perceber, naquele momento, qualquer coisa além dela e a flor.
Julia, se ele bem observasse, olhava em todas as direções; estava inquieta,à espera de algo. O pai e a mãe lhe deram aquela festa pelos seus quinze anos, e ela triunfalmente, talvez - estaria esperando o príncipe encantado (ou o sapo?), e desatenta, ao mesmo tempo no qual se dispunha a olhar para os lados, não via nada além de sua ansiedade às portas da valsa da meia noite, a ser executada por dois velhos rabequistas.
Jorge, que se mantinha tímido a observar, sem coragem sequer para esboçar qualquer elogio a uma criatura considerada divina por ele, viu ela se aproximando, chegando mais perto, tão perto… fechou os olhos, e esperou. Abriu segundos depois; ela seguia de mãos dadas com um rapaz. Por sorte, só um grupinho viu o vexame da sua ilusão.
Talvez nunca tivesse doído antes como doía agora.
De repente, acordou. Dormira, relembrando pela quinquagésima vez o que foi sem nunca ter sido. Felizmente a vista do campo, as pessoas caminhando no ramal e o vento dominando as árvores fizeram-no esquecer, e embalado por tudo isso, ele contemplou o horizonte eterno, misterioso como os sonhos e a vida.

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