A Espera

Mário morava em um antigo sobrado na Rua da Estrela. Tinha cerca de quarenta anos,  mas sua reclusão fazia-lhe parecer um pouco mais velho.
Vivia só. Na sua casa,  no entanto,  não havia quaisquer indícios de desorganização. Amigos,  não os tinha,  tampouco desejava alguém que viesse zanzar nos seus ouvidos. Engana-se quem pensa que,  a despeito disso tudo,  ele era extremamente insatisfeito com a própria vida.
Naquele sábado,  abriu os olhos,  havia acabado de ter um pesadelo. Pegou o relógio,  na cômoda ao lado do espelho da cama. Já eram cinco e meia. Urgia levantar para buscar a sua filha. Tomou um rápido banho,  preparou um pouco de café amargo,  mastigou o pão de dois dias,  escovou os dentes. Novamente,  resolveu consultar o relógio,  o qual estava - agora - no seu pulso.  Ainda eram seis da manhã. "Joana falou pra eu esperar ela trazer Lucília às oito", pensou. "Mas preciso ir apenas perto do horário? ". "Ah, posso ir agora,  por mais que espere bastante. Não o que fazer aqui  agora. "  E assim,  com seus passos calmos,  ele se deslocou até à Praça da Alegria. Enquanto andava pelas ruas, lembranças vinham-lhe à tona. "Foi ali", pensou,  "que dei meu primeiro beijo. Bem no canto da igreja,  coisa de criança", sorriu sozinho. No caminho,  encontrou apenas mendigos. "Sou mais miserável que eles,  pois não ajudo a amenizar as suas dores. " Por fim,  chegou à praça. Tudo deserto. Por vezes, um ou outro morador daqueles arredores circulava ali. Fazia o mais completo silêncio. Uma mulher passou rápido,  desconfiando que era um ladrão. Ele percebeu, e se sentiu ofendido.  Olhou ao redor. Esqueceu do tempo aqui e agora. Foi ali que conheceu Joana. Naquela época,  tinha uns vinte e poucos anos. Ela, pouco mais de dezoito.  Haviam esbarrado um no outro. Ele juntou as compras que haviam caído. Ela agradeceu. Um olhar de confiança e respeito mútuo veio logo em seguida e, num impulso irracional,  ela deu o número do telefone. Ele não tinha,  então usava cartões pra ligar do orelhão. Marcaram encontro, e lá seria o lugar.  Frequentaram a praça uma,  duas, quinze vezes. Na décima quinta,  desviaram o caminho.  Dois meses depois,  Mário e Joana casavam, a fim de reparar " a honra duma moça de família". Foram morar naquela casa, que ele havia comprado a duras penas.
Não se passou muito tempo até ambos descobrirem que a gravidez de Joana era psicológica. E agora? Já estavam juntos,  mas poderiam não estar, por mais que se amassem bastante. Pelo menos,  pensavam dessa forma. Depois desse incidente, passaram a viver como dois conhecidos que dividiam o mesmo espaço. Ele saía às seis para o serviço,  ela também trabalhava; Estava acostumada a sair quarenta minutos depois.
Dividiam a mesma cama, cada qual do seu lado. Uma noite,  porém,  procuraram um ao outro. Depois de cinco anos juntos, indícios de uma gravidez real. Dessa vez, não havia dúvidas.
A gestação serviu como uma nova chance para o casamento. Esteve junto à Joana em todos os momentos possíveis. Lembrou, como se fosse ontem,  o momento em que Lucília nasceu...
Olhou o relógio,  passava das sete e meia. O movimento no Centro melhorava. Pessoas deslocavam-se, absortas em seus próprios mundos. "Nós,  humanos,  somos seres escrotos", pensou. " A dor do outro,  o que significa? Nada,  além de um problema externo à minha existência". Sentou-se, cansado de estar em pé.
De volta às lembranças,  lembrou dos quatro anos e meio calmos que tiveram do nascimento de Lucília até a separação. Os primeiros passos, a alfabetização da filha... A lembrança da ruptura sobrepunha-se. " Não devia lembrar disso", pensou. " Se bem que, agora não doi mais". Foi um pai presente, mas um marido frio e indiferente. Sabia reconhecer isso. O que os mantinha juntos era a filha ainda pequena. Joana o acusava de ser pouco ambicioso,  ele dizia não ter mais saco pra tolerar o temperamento dela.  Certo dia,  o surpreendeu ao dizer que havia comprado uma casa. Nunca disse o endereço. Uma semana depois,  mudou-se com Lucília. Separaram- se no civil; No religioso, praticamente impossível. "Nós dois erramos", pensou. E falou sozinho:
- Eu errei muito mais!
Acompanhava o crescimento da filha,  quando ela vinha passar os finais de semana. Sentia-se prejudicado pela distância. Joana, havia quatro anos casara novamente,  e tinha à essa altura mais dois filhos. E ele? Sozinho, completamente, a ponto de conversar consigo mesmo. Tinha um gato, a quem chamava de Ted. Era a sua única companhia. A reclusão sempre foi o seu maior erro.
Mais uma vez, consultou o relógio. Não, não era possível. Eram oito e quinze. Pegou o celular, estava no perfil silencioso. Havia uma mensagem:
"Lucília hoje vai pra casa da avó. Desculpa. "
A mensagem o deixou abatido. Há quase um mês,  não a via. Há quase um mês lhe negavam esse direito. Começou a chorar. Pessoas passavam e observavam a cena, algumas assustadas.
Mário controlou suas lágrimas,  e como uma criança infeliz,  voltou para casa com seus tristes e trôpegos passos,  sem perceber que o dia sorria para ele, estranho homem perdido nesse universo esquisito.

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